terça-feira, 5 de julho de 2011

Herculano Neto


MICRONARRATIVAS

O MENINO ALBINO DO MARICÁ 

Durante a gravidez da mãe da minha filha, eu dormia menos e tinha sonhos recorrentes com um menino albino que conheci na infância. Acordava assustado, achando que minha filha nasceria despigmentada. 
Ele era filho de pais negros, visto pela vizinhança do Maricá num misto de curiosidade e aberração. Eu costumava lhe dizer crendices somente para lhe deixar aterrorizado e revoltado: dizia que os albinos antigamente eram atração de circo, que em algumas culturas eram sacrificados porque simbolizavam má sorte ou que na África os albinos ainda eram caçados como animais e tinham o corpo retalhado para ser utilizado em feitiçarias. 
Um dia, ele caiu da sacada de um prédio em construção enquanto brincava: traumatismo craniano, fraturas múltiplas, morte instantânea. Para a família, acidente. Mas eu sabia que ele preferia se matar a ter seu corpo mutilado ou viver sendo apontado na rua. 
Depois que minha filha nasceu, uma pretinha linda, passei a sonhar menos com o menino albino do Maricá.



MAIS UMA  DOSE

Minha cidade é uma cidade de bares, de botecos, mas não é uma cidade da noite - a noite ri da minha cidade. Lanchonetes que vendem mais cerveja que refrigerante e mercadinhos que vendem mais doses de aguardente que farinha, se proliferam por suas esquinas, abrigando castas de desiludidos como eu. 
O templo evangélico de outrora agora é um bar. Certa feita, sentado nas cadeiras da congregação, acompanhei a pregação do pastor que, inflamado, exaltava os presentes com urros: “Aquele que tiver fé coloque aqui o seu dinheiro”. Levantei e fui embora. Não porque eu não tivesse caraminguás, ainda dava pra mais uma dose, mas porque percebi que me faltava fé.

Herculano Neto
Poeta e ficcionista
mantém o blog POR QUE VOCÊ FAZ POEMA?

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